Muito perto de casa: por que os brasileiros ficaram indignados com esta série de crimes reais?

A trilogia A Garota que Matou Seus Pais é um clássico crime verdadeiro com uma reviravolta. Os filmes contam a história dos assassinatos de Von Richthofen de Manfred e Marísia através da perspectiva de Suzane (filha das vítimas), Daniel Cravinhos (namorado de Suzane na época) e da detetive Helena.

Quando a série de filmes foi anunciada pela primeira vez, a reação no Brasil foi imediata. Até mesmo os rumores sobre os assassinos condenados, Suzane e Daniel, recebendo dinheiro dos lucros do filme tiveram que ser esclarecidos como falsos. Imediatamente, esse comportamento chamou minha atenção. Por que um público tão propenso a consumir crimes reais – segundo o Spotify, os podcasts de crimes reais estão entre os três gêneros mais baixados pelos brasileiros – ficou tão indignado?

Então, assisti à trilogia A Garota que Matou os Pais. Os filmes eram bons. As atuações foram imprevisíveis, com algumas cenas excelentes. O roteiro era bom, mas os roteiristas da série Ilana Casoy e Raphael Montes se saíram melhor em programas como Bom Dia, Verônica. Além disso, a direção era irregular, com ritmo irregular.

Dito isso, no meu entender, nada nos filmes parecia romantizado. Sim, Suzane e Daniel demonstram ter um relacionamento intenso, mas grande parte da trilogia A Garota que Matou Seus Pais é sobre sua dinâmica profundamente conturbada. Nunca somos convidados a aspirar ao que eles têm, mas sim a observar como alguém pode cair na toca do coelho.

Então, o que levou a uma resposta tão intensa dos brasileiros? Para responder a esta pergunta, devemos olhar para trás no tempo e tentar compreender o que é a verdadeira mídia criminosa e por que interagimos com ela dessa maneira.

As histórias de crime não são novas. De horrores no século 19 a livros, rádio e programas de TV no século 20, não é surpresa que, na era da Internet, esse tipo de conteúdo tenha crescido exponencialmente. Serial (2014 – Agora), Making a Murder (2015), Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story (2022) e inúmeros outros podcasts, documentários e dramatizações ficcionais se infiltraram nas plataformas de streaming. Apesar das críticas, a maioria das respostas a conteúdos como este são positivas. Veja Dahmer – Monster, de Ryan Murphy, amplamente premiado por suas atuações e roteiros.

Esta popularidade não é exclusiva dos EUA, onde 34% dos adultos afirmam ter ouvido regularmente podcasts sobre crimes reais no ano passado, mas é também um fenómeno em todo o mundo.

No Brasil, temos uma longa história com o gênero. Programas como Aqui Agora e Linha Direta, transmitidos entre o início dos anos 1990 e meados dos anos 2000, moldaram muito do que o público entende sobre o verdadeiro crime. Principalmente a Linha Direta – que foi reiniciada em 2023 – seguiu o clássico formato “caso da semana”.

A maioria dos casos mostrados foram encerrados ou ocorreram há décadas, ajudando a criar uma sensação de distanciamento da violência. No entanto, algumas das histórias estavam em andamento. Em casos como esse, a produção mostrava um número de telefone ao final do episódio. Dessa forma, qualquer pessoa com informações sobre esse caso poderia ligar e ajudar na investigação. Este formato interativo foi um sucesso. Apelou à nossa necessidade humana natural de resolver puzzles e mistérios, dando-nos a sensação de ter algum controlo sobre actos aleatórios de violência.

No entanto, o “caso da semana” foi desaparecendo lentamente em favor de um estilo mais sensacionalista como o Cidade Alerta, um programa jornalístico que apresenta imagens chocantes de cadáveres machucados e principalmente mortos.

Os crimes abordados nesses programas geralmente são relacionados a drogas ou gangues, o que ajudou a criar a imagem de um país profundamente violento e cheio de criminosos sem coração. Com isso implantado na consciência das pessoas, grande parte do verdadeiro crime “de estilo detetive” que os brasileiros começaram a consumir veio dos EUA, especialmente quando a TV a cabo teve seu grande boom em meados dos anos 2000 e na década de 2010.

Programas como Detetives Médicos e canais como Investigation Discovery tornaram-se a escolha do público, só sendo eventualmente anulados por podcasts em meados e no final da década de 2010.

Acredito que esse tipo de deslocamento criou um fenômeno interessante. Grande parte do verdadeiro crime nos EUA depende dos tropos do serial killer, que normalmente é um homem branco definitivamente perigoso que é de alguma forma interessante o suficiente para tentarmos entendê-lo. Isso criou no público brasileiro a sensação de um “tipo diferente de crime”.

A impressão foi que aqui tínhamos violência nascida de questões econômicas, sociais e políticas. Mas em lugares como os EUA, o crime surgiu de perpetradores singulares. É claro que isso não é verdade, mas foi assim que os meios de comunicação social ensinaram as pessoas a perceber o seu ambiente. É por isso que quando acontece um crime como o cometido contra von Richthofen, há tanta indignação.

É fato inegável que o que foi feito com Manfred e Marísia foi um ato de violência cruel e sem sentido, guiado apenas pela ganância e pelo ressentimento. Afetou não só o casal, mas também as pessoas ao seu redor, como o irmão mais novo de Suzane, Andreas. No entanto, não é exagero dizer que a violência que lhes foi infligida não é diferente da violência infligida a alguém que é morto devido a um conflito de drogas. O que os separa é como um é percebido como violência interpessoal, enquanto o outro é interpretado como violência social, ou seja, apenas mais uma vítima do sistema.

Acredito que seja por causa dessa percepção de como é o crime no Brasil que há tanta indignação em relação a filmes como A Garota que Matou os Pais. Eles ousam desafiar tal percepção.

É amplamente sabido que foi Suzane quem planejou os detalhes do assassinato, mas que os executores foram Daniel e Cristian Cravinhos. Porém, a forma como o caso é apresentado na mídia concentra-se em Suzane e quase apaga Daniel e Cristian. Manchetes irônicas afirmam como ela foi libertada para as comemorações do Dia das Mães ou como ela tem um novo namorado, com a implicação de que ela pode estar manipulando-os para atividades criminosas. Basta digitar o nome dela na barra de pesquisa e inúmeras reportagens sensacionalistas aparecerão.

Compare isso com as simpáticas manchetes de “novo começo” que você recebe quando digita Daniel Cravinhos, agora preferindo ser chamado de Daniel Bento.

Há uma distinção clara entre como a mulher e o homem são retratados neste caso. Enquanto Daniel pode seguir em frente, Suzane está fadada a ser para sempre a mesma pessoa que era em seu pior momento. Isto não é de forma alguma uma afirmação de que uma pessoa é mais inocente ou mais culpada do que a outra. Em vez disso, fornece uma visão de como os meios de comunicação social afectam as nossas percepções sobre porquê e que tipos de pessoas cometem crimes.

A razão pela qual A menina que matou os pais gera tanta polêmica é que ousa abordar os autores de um crime cometido no Brasil, da mesma forma que a mídia americana faz. Move a violência de uma realidade sistemática para algo muito próximo de casa. As pessoas não sabem como reagir quando confrontadas com o facto de saberem ou terem sentido o mesmo que alguém que cometeu um ato de violência tão cruel.